do texto e do drama

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A concepção do texto como elemento dramático (base) é superado.

A compreensão do drama passa naturalmente pela justaposição de códigos, símbolos e signos (desde a vocalização ao gesto, da atitude aos elementos técnicos – som, luz, etc. – passando pelo elemento linguístico, assim como tudo o que intervém em conformidade com a actuação e tudo o que se oferece no espectáculo enquanto objecto estético – total).

Impõe-se, pois, uma valorização da acção dramática ainda que se questione estilo, forma, género… tudo isto não exclui, naturalmente, as propostas reflexivas e a presença de um «espectador» (enquanto colectivo) com seus hábitos de consumo cultural…

A imposição de conceitos como sejam o espaço frontal  ou o diálogo formal, implicam uma quase impossibilidade de viajarmos por entre propostas que impliquem o drama em espaço físico, dinâmico, liberto …. um espaço que; como diria Artaud: “exige seja ocupado e que permita uma linguagem própria e concreta….” ou seja, um espaço aberto aos sentidos, um espaço independente e livre de qualquer imposição.

Um espaço aberto a qualquer linguagem, à espontaneidade e à criatividade que irrompe do corpo (todo) do actor enquanto criador de acção, enquanto sacerdote de um ritual – o drama.

“Há uma poesia dos sentidos 

como há uma poesia da linguagem… 

essa linguagem é o tudo, o tudo 

que ocupa a cena, tudo o 

que pode expressar-se 

ou manifestar-se…” 

(Antonin Artaud)

Estamos perante uma acção que se afasta do convencional, logo que se afasta do logocentrismo, do teatro burguês  – a visão de um teatro como texto representado, valoriza apenas um tipo de representação muito determinado e concreto. representação que tem limitado (durante anos) a possibilidade de potênciar outro tipo de mecanismos tão mais eficazes na sua teatralidade ou relegado para espaços marginais ou experimentais as tentativas de impor a diferença. Difícil, sem dúvida, afastar este formalismo tão entranhado na nossa prática cultural e contrapor-lhe manifestações radicalmente opostas como seja o regresso a manifestações claramente populares e tradicionais, onde não falte a acrobacia, dança, técnicas circenses, etc. isto para não mencionar a recusa sistemática ao absurdo, à criação de efeitos que se afastam das convenções do que é tido como correcto em arte… a recusa da da liberdade, espontaneidade, que irrompe e subverte todas as convenções de um teatro limitado ao debitar de palavras ou a ideia de um teatro de autor. Hà pois, uma certa tendência para conceptualizar o teatral na relação com determinados espaços como por ex. O espaço à Italiana – frontal. E a um público determinado. Podemos mesmo afirmar que práticas criadoras de um texto preferencialmente literário impõe um diálogo francamente autoritário.

A poesia da linguagem é natural nas todas vertentes expressivas (música, dança, plástica, pantomina, mímica, gesticulação, entonização – entendida, esta, como essa faculdade que tem as palavras de criar uma musica própria – um ritmo). O caminho que conduz ao movimento, que leva o actor a compreender as linguagens em jogo, produz-se pela via dos sentidos. O submeter-se espontaneamente e cuidadosamente a estímulos diversos que permitam observar as reacções naturais do corpo enquanto organismo. Um trabalho com cor, com ritmo, com materiais, com a música para que se possa entender a dinâmica de uma cor determinada, dum material como o ferro ou a madeira, sentir o tempo, o vento. 

Um teatro abstracto mas que pode provocar o sentido de pesquisa do espiritual, uma ideia de formas e matérias. Submergir ao actor noutra dimensão de consciência que permite extrair de si mesmo a essência de seus estímulos e movimentos.E o movimento é essa força perfeita que explica o mundo…  

São os corpos, as massas, que no seu envolvimento encontram a justiça e a perfeição do 

ritmo, isoladas de uma racionalização que só pode chegar como reflexão 

final e não procedente da prática dramática.

cartas e poemas do menino arthur rimbaud

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CARTAS DO VISIONÁRIO E MAIS NOVE POEMAS DE ARTHUR RIMBAUD

Para GEORGES IZAMBARD

Charleville, [13] de Maio de 1871

Caro Senhor:

Eis-vos de novo professor. Devemo-nos à sociedade, dissésteis-me vós; fazeis parte do corpo dos docentes: seguis por caminhos experimentados. -Também eu sigo o princípio: cinicamente, faço-me sustentar; desencaminho alguns imbecis antigos do colégio: tudo o que possa inventar de mais estúpido, porco e reles, por palavras ou acções, a eles o deixo: pagam-me com canecas e miúdas – Stat mater dolorosa, dum pendet filius, – Devo-me à sociedade, é justo, – e tenho razão. -Também vós tendes razão, por hoje. No fundo, vós nada vedes em vosso princípio senão poesia subjectiva: a vossa obstinação em retomar a manjedoura universitária – perdão- prova-o. Mas acabareis sempre como um satisfeito que nada fez, nada tendo querido fazer. Além de que a vossa poesia subjectiva será sempre horrivelmente fastidiosa. Um dia, espero, – muitos outros esperam a mesma coisa – verei no vosso princípio a poesia objectiva, vê-la-ei mais sinceramente que vós próprio a fareis! – Serei um trabalhador: é a ideia que me retém, quando a louca cólera me empurra para a batalha de Paris – onde tantos trabalhadores morrem agora mesmo que vos escrevo. Trabalhar agora, nunca, nunca; estou em greve.

Agora, mergulho na maior devassidão possível. Porquê? Quero ser poeta e trabalho para me tornar visionário: vós não compreendeis nada e eu não sei se saberei explicar-vos. Trata-se de atingir o desconhecido através do desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes mas é preciso ser-se forte, ter nascido poeta, e eu reconheci-me poeta. Não é de modo algum culpa minha. É falso dizer-se: eu penso. Deveria dizer- se: sou pensado. – Desculpe o trocadilho. –

Eu é um outro. Tanto pior para a madeira que se descobre violino e zomba dos inconscientes que discreteiam sobre aquilo que pura e simplesmente ignoram. Não sois Mestre para mim. Dou-vos isto: será uma sátira como vós diríeis? É poesia? Fantasia, é-o sempre. – Mas, suplico-vos, não a sublinheis com o lápis nem – demasiado – com o pensamento:

Coração Supliciado

(…………………………….)

Isto não quer dizer nada. – RESPONDA-ME: para casa do sr. Deverrière, para A. R.

Saúdo-o, de todo o coração,

Art. Rimbaud

Para PAUL DEMENY em Douai

Charleville, 15 de Maio de 1871

Resolvi dar-vos uma hora de literatura nova; começo de imediato com um salmo de actualidade:

Canto de Guerra Parisiense

(…………………………………………)

Eis agora alguma prosa sobre o futuro da poesia –

Toda a poesia antiga desemboca na poesia grega; Vida harmoniosa. Da Grécia ao movimento romântico, – Idade Média, – há alguns letrados, alguns versificadores. De Ennius a Theroldus, de Theroldus a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, relaxamento e glória de inúmeras gerações de idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. -Tivessem-lhe soprado sobre as rimas, baralhado os hemistáquios, e o Divino Idiota seria hoje tão desconhecido como o primeiro vindo, autor de Origens (1). -Após Racine, o jogo criou bolor. Durou dois mil anos!

Nem zombaria, nem paradoxo. A razão inspira-me mais certezas sobre esta matéria que fúrias teria tido um Jeune-France (2). De resto, os novos! têm por regra a liberdade de execrar os avoengos: estamos à vontade e temos tempo livre.

Nunca se julgou adequadamente o romantismo; quem o teria julgado? Os críticos!! Os românticos, que provam tão bem ser a canção raramente a obra, quer dizer o pensamento cantado e compreendido, do cantor?

Porque Eu é um outro. Se o cobre se descobre clarim, não há aí nada de culpa sua. Isso é evidente para mim: assisto à eclosão do meu pensamento: vejo-a, escuto-a: lanço um movimento com o arco: a sinfonia vai abalando as profundezas, ou salta de repente para o palco.

Se os velhos imbecis não tivessem encontrado do Eu apenas a significação falsa, não tínhamos que varrer esses milhões de esqueletos que, desde há um tempo infinito!, acumularam os produtos da sua inteligência vesga, proclamando-se autores!

Na Crécia, já o disse, versos e liras ritmam a Acção. Depois, música e rimas são jogos, refrigério. O estudo deste passado encanta os curiosos: muitos aprazem-se a renovar estas antiguidades: – é para eles. A inteligência universal sempre arremessou as suas ideias com naturalidade; os homens recolhiam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se em conformidade, escreviam-se livros: tal era o sentido das coisas, o homem não se trabalhando, não estando ainda desperto ou não ainda mergulhado na plenitude do grande sonho. Funcionários, escreventes: autor, criador, poeta, esse homem nunca existiu!

O primeiro estudo para o homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, por inteiro; ele procura a sua alma, inspecciona-a, experimenta-a, apreende-a. Desde que a sabe, deve cultivá-Ia; isso parece simples: em todo o cérebro se dá um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; muitos outros atribuem-se o seu próprio progresso intelectual! – Mas do que se trata é de tornar a alma monstruosa: a exemplo dos comprachicos (3), pois! Imagine um homem implantando e cultivando verrugas no seu próprio rosto.

Digo que é necessário ser visionário, fazer-se visionário.

O Poeta faz-se visionário por um prolongado, imenso e calculado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele próprio procura, esgota em si todos os venenos para deles guardar apenas as quintessências. Inefável tortura em que ele precisa de toda a fé, de toda a sobre-humana força, em que ele se torna entre todos o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, – e o supremo Sábio! – Pois ele atinge odesconhecido! Uma vez que cultivou a sua alma, já de si rica como nenhuma! Ele atinge o desconhecido e, acaso, enlouquecido, acabasse por perder a inteligência das suas visões, tê-las-à visto! Que ele estoire no seu sobrevôo pelas coisas inauditas e inomináveis: virão outros horríveis trabalhadores; começarão pelos horizontes onde o outro se abateu!

– A sequência dentro de seis minutos –

Aqui intercalo um segundo salmo fora do texto: queira dispensar um ouvido complacente, – e toda a gente ficará encantada. – Tenho o arco na mão, começo:

As Minhas Pequenas Apaixonadas

(………………………………………………….)

Pronto. E repare bem que se eu não receasse fazer-vos desembolsar mais de 60 c. de portes, – eu, pobre assombrado, que desde há sete meses não embolso uma única moeda de bronze! – enviar-vos-ia ainda os meus Amantes de Paris, cem hexâmetros, caro senhor, e a minha Morte de Paris, duzentos hexâmetros! –

Retomando:

É pois o poeta, verdadeiramente, ladrão de fogo.

Ele tem a seu cargo a humanidade, os animais mesmo; deve fazer sentir, palpar, escutar as suas invenções; se aquilo que ele transmite de lá tem forma, ele dá a forma; se é informe, ele dá o informe. Achar uma língua;

– De resto, sendo toda a palavra uma ideia, o tempo de uma linguagem universal virá! É preciso ser-se académico – mais morto que um fóssil, – para compilar um dicionário, seja de que Iíngua for. Um ser fraco que se meta a pensar sobre a primeira letra do alfabeto, e poderá rapidamente precipitar-se na loucura! –

Esta língua será de alma para alma, compreendendo tudo, perfumes, sons, cores, o pensamento enganchado no pensamento, desfiando-o. O poeta definiria a quantidade de desconhecido despertando em seu tempo na alma universal: ele daria mais – que a fórmula do seu pensamento, que a marcação da sua marcha para o Progresso. Enormidade tornando-se norma, absorvida por todos, ele será verdadeiramente um multíplícador de progresso!

Este futuro será materialista, bem o vedes. – Sempre repletos do Número e daHarmonia, estes poemas serão feitos para permanecer. – No fundo, será ainda um pouco a Poesia grega.

A arte eterna teria as suas funções; assim como os poetas são cidadãos. A Poesia não ritmará mais a acção; ela estará na dianteira.

Estes poetas serão! Quando for quebrada a infinda servidão da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem, – até aqui abominável, – tendo-lhe rendido a vez, ela será poeta, também ela! A mulher penetrará no desconhecido! Os seus mundos de ideias diferirão dos nossos? – Ela achará coisas estranhas, insondáveis, repugnantes, deliciosas; nós tomá-las-emos, nós compreendê-Ias-emos.

Entretanto, exijamos aos poetas o que for de novo, – ideias e formas. Todos os habilidosos pensariam rapidamente ter já satisfeito esta exigência. – Não é isso!

Os primeiros românticos foram visionários sem disso se darem bem conta; o cultivo de suas almas começou nos acidentes: locomotivas abandonadas, mas a queimar, que a espaços retomam ainda os carris. – Lamartine é por vezes visionário, mas a forma velha estrangula-o. – Hugo, por demais cabeçudo, soube bem ver nos seus últimos volumes; Os Miseráveis são um verdadeiro poema. Folheio Os Castigos; Stella oferece mais ou menos o alcance da vista de Hugo. Demasiado Belmontet e Lamennais, demasiados Jéhovahs e colunas, velhas enormidades perimidas.

Musset é catorze vezes execrável para nós, gerações dolorosas e tomadas de visões, – que a sua preguiça de anjo insultou! Oh! os contos e os provérbios fastidiosos! oh as noites! oh Rolla (4), oh Namouna, oh a Coupe! tudo é francês, quer dizer detestável no supremo grau; francês, não parisiense! Ainda uma obra desse odioso génio que havia já inspirado Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine, comentado pelo Sr. Taine! Primaveril, o espírito de Musset! Encantador, o seu amor! Eis aí pintura sobre esmalte, poesia sólida! Saborear-se-á durante muito tempo a poesia francesa, mas em França. Qualquer rapaz talhista está à altura de desbobinar uma apóstrofe Rollastra, qualquer seminarista transporta as suas quinhentas rimas no segredo de um canhenho. Aos quinze anos, estes impulsos de paixão põem os jovens a uivar à lua; aos dezasseis anos, eles contentam-se já em recitá-los com coração; aos dezoito anos, aos dezassete anos mesmo, todo o colegial dispondo dos meios, faz o Rolla, escreve um Rolla! Talvez alguns ainda morram disso. Musset não soube fazer nada: tinha lá algumas visões por detrás da gaze dos cortinados: fechou-lhes os olhos. Francês, Pavoneador, arrastado do botequim para as estantes das escolas, o belo morto está morto e, agora, não nos demos sequer ao trabalho de o despertar com as nossas abominações!

Os segundos românticos são bem visionários: Th. Gautier, Leconte de Lisle, Th. de Banville. Mas sendo a prospecção do invisível e a escuta do inaudito coisas diversas de retomar o espírito das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro visionário, rei dos poetas, um verdadeiro Deus. Ainda viveu porém num meio demasiado artista; e a forma, que lhe é tão louvada, é mesquinha: as invenções de desconhecido reclamam formas novas.

Afeitos às velhas formas, entre os inocentes, A. Renaud, – criou o seu Rolla; – L. Grandet, – criou o seu Rolla; – os gauleses e os Musset, G. Lafenestre, Coran, CI. Popelin, Soulary, L. Salles; Os académicos, Marc, Aicard, Theuriet; os mortos e os imbecis, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, os Deschamp, os Desessarts; os jornalistas, L. Cladel, Robert Luzarches, X. de Ricard; os fantasistas, C. Mendès; os boémios; as mulheres; os talentos, Leon Dierx e Sully Prudhomme, Coppée; – a nova escola, dita parnasiana, tem dois visionários, Albert Mérat e Paul Verlaine, um verdadeiro poeta. – Eis, pois (5). – Trabalho assim para me tornar visionário. – E terminemos por um canto piedoso.

Prostrações

(…………………………………………)

Seríeis execrável se não me respondêsseis: rapidamente, pois dentro de oito dias estarei talvez em Paris.

Até à vista.

A. Rimbaud

_________________
NOTAS:

(1) – Ennius – “le premier venu” é um poeta latino, autor dos ‘Anais’ e não de ‘Origens’ como lhe é aqui imputado.

(2) – Jeune France: Movimento literário, reunido em torno de Théophile Gautier e Gerard de Nerval, representando a tendência extrema do romantismo francês de 1830.

(3) – Comprachicos: Indivíduos que se dedicavam ao comércio de crianças com vista a serem exploradas na mendicidade, por vezes após sofrerem graves mutilações. São referidos num romance de Vitor Hugo, «L’Homme qui rit».

(4) Rolla: Um poema de Alfred de Musset de temática histórica no seu estilo sombrio; Musset era então alvo de vários ataques nomeadamente de Baudelaire que o apelidou de “mestre dos peralvilhos”.

(5) – Este impressionante desfile literário, de personalidades pela sua maior parte hoje totalmente desconhecidas, é ordenado segundo o Parnasse Contemporain de 1866 e suas edições de 1869.

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NOVE POEMAS

OS POETAS DE SETE ANOS

Ao Sr. P. Demeny.

E a mãe, encerrando o livro grande do dever,
Retirava-se altiva e satisfeita sem poder ver,
Nos olhos azuis e sob a fronte plena de elevação,
A alma do seu menino assolada pela aversão.
Todo o dia ele transpirava de obediência; inteligente;
Mas alguns tiques negros, certos rasgos da sua mente,
Pareciam provar nele as mais azedas hipocrisias.
Na sombra dos corredores, sob bolorentas tapeçarias
De passagem, tirava a Iíngua de fora, as mãos fechadas
Na virilha, os olhos cerrando-se sobre visões pontilhadas.
Uma porta se abria sobre a noite: a lâmpada da escada
Denunciava-o lá em cima, agonizando na balaustrada,
Sob essa enseada de dia pendente do tecto. No Verão
Sobretudo, estúpido, vencido, era sua obstinação
Encerrar-se de novo no fresco remanso das latrinas:
Aí meditava ele, tranquilo e abrindo bem as narinas.
Quando, lavado dos odores do dia, nas traseiras do lar,
O pequeno jardim, pelo Inverno, se banhava de luar,
jacente ao pé de um muro, enterrado na marga
E por visões esmagando o seu olhar que se embarga,
Ele escutava o fervilhar das fungosas latadas.
Piedade! Essas crianças apenas eram a ele chegadas,
Delgadas, a cara descoberta, olhos na face desmaiados,
Ocultando uns magros dedos negros na lama amarelados
Sob as velhíssimas roupas tresandando a excremento,
Conversavam com uma doçura idiota pedindo lamento!
E se, surpreendendo-o entregue a piedades imundas,
A mãe se horrorizava; as carícias mais profundas
Do filho se precipitavam sobre este anseio protector.
Era bom. Doce, o seu olhar azul – enganador!
Aos sete anos, fazia ele romances, sobre a vida
Do grande deserto em que luz a Liberdade remida,
Florestas, sóis, rios, savanas! – Ele se inspirava
Em jornais ilustrados onde, corado, observava
Espanholas de riso solto e também italianas.
Quando vinha, olhos pardos, louca, em vestes indianas
– Oito anos, – a filha dos operários da casa ao lado,
Essa miúda brutal, e após que ela tivesse saltado,
A um canto, sobre o seu dorso, agitando as tranças,
Estando sob ela, mordia-lhe as nádegas distensas,
Pois ela não trazia nunca calcinhas, era sabido;
-E por ela sendo, a punhos e calcanhares, contundido,
Retirava-se, guardando de sua pele o vivo sabor.
Temia ele apenas os domingos de dezembro sem cor,
Em que, o cabelo abrilhantado, sobre uma mesa de centro,
Lia passagens numa bíblia de bordos verde-coentro;
Sonhos opressivos tomavam-no à noite quando recolhia.
Não amava Deus; mas os homens que ao arruivar do dia,
Enegrecidos, em blusa, ele via regressar ao arredor
Onde os pregoeiros, com três rufares de um tambor,
Em torno dos editais fazem rir e resmonear a multidão.
– Ele sonhava a várzea amorosa em que uma agitação
Luminosa, perfumes sadios, pubescências douradas,
Marulham calmamente e retomam suas aéreas moradas.
E assim ele saboreando sobretudo as coisas sombrias,
Quando, em seu aposento despido, corridas as gelosias,
O quarto alto e azul, duramente tomado de humidade,
Lia o seu romance, aí repensado com tenacidade,
Cheio de pesados céus ocres e florestas inundadas,
De pétalas de carne em lenhos siderais transmutadas,
Vertigem, desabamentos, derrotas e compaixão!
– Enquanto do bairro se ia levantando a excitação,
Em baixo – só, em seus lençóis de pano-cru envolto,
E pressentindo já violentamente o velejar solto.

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AS RECORDAÇÕES DO VELHO IDIOTA

 

Perdão meu pai!

Jovem, nas feiras de qualquer vilória,
Procurava eu, não a barraca de tiro, a velha história,
Mas o sítio carregado de gritos em que os jumentos,
Exaustos, cediam de si aqueles longos tubos sangrentos
Que não compreendo ainda!…
E minha mãe então,
De quem a camisa largava aquela amarga exalação,
Algo amarrotada em baixo e amarela como um fruto,
Minha mãe que se deitava com certo ruído – produto
Do trabalho porém – minha mãe com sua coxa cheia
De mulher madura, com seus rins em que pregueia
O branco linho, me dava aqueles calores que silencio!…
Vergonha mais crua e calma, era quando, pelo frio
Minha irmã mais nova, no seu regresso da escola,
Tendo arrastado sobre o gelo os tamancos e a sacola,
Mijava, olhando que se escapava de seu labiozinho
Rosado e bem apertado, aquele travesso fiozinho!…
Ó perdão!
Sonhava eu com meu pai por vezes:
Ao serão, o jogo de cartas e os seus ditos soezes,
O vizinho, e eu que era retirado, coisas conhecidas…
– Pois um pai é perturbador – e as coisas concebidas!…
Seu joelho, acariciador por vezes; as suas calças
De que meu dedo desejaria abrir a fenda,…- oh! caraças!
Para haver, de meu pai, a ponta, grande, negra e dura,
Dele cuja mão peluda me embalava!…
E aqui se descura
O púcaro, o pequeno prato de asa, entrevisto lá acima,
Os almanaques de capa vermelha, e aquela cestinha
De pano, e a Bíblia, e os lugares todos, e a criada,
A Virgem santa e o crucifixo…
Oh! que ninguém, por nada,
Foi tantas vezes perturbado, assim como espantado!
E nesta hora, enfim, seja eu de tudo aqui perdoado:
Pois que os infectos sentidos me apanharam nos seus redis,
Solenemente confesso todos estes meus crimes juvenis!…
………………………………………………..
E já agora! – seja-me enfim permitido falar ao Senhor!
Porquê a puberdade tardia e esse indizível temor
Da glande tenaz por demais consultada? Porquê a sombra
Tão lenta no baixo ventre? e esse terror que se encontra
Cumulando sempre a alegria, tal saibro na corrente?
– Eu, estive sempre estupefacto! De quê ser sabedor?
……………………………………………….
Perdoado?
Retome o seu escalda-pés azul, não foi nada,
Meu pai.
Ó esta infância!
…………………………………………
…………………..- e retiremo-nos a cauda!

rimbaud-p

ORAÇÃO DA TARDE

 

Vivo eu sentado, tal um anjo às mãos de um barbeiro,
Empunhando uma caneca de enormes caneluras,
O pescoço e o hipogástrio curvos, o cachimbo inteiro
Nos dentes, sob o ar enfunado por velas imaturas.
Tais os excrementos bem frescos num velho pombal,
Mil Sonhos em mim alastram sua doce calcinação:
Depois por instantes meu triste coração é um pinheiral
Sangrado de ouro jovem e sombrio pela resinação.
Depois, quando já engoli meus sonhos em amenidade,
Volto-me, com umas trinta canecas viradas de borco,
E recolho enfim, para verter a amarga necessidade:
Doce como o próprio Senhor do cedro e do hissopo,
Mijo para os escuros céus, longe e em profundidade,
Os grandes heliotrópios dando seu assentimento choco.

rimbaud-p

VOGAIS

 

A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul: vogais,
Algum dia direi desses vossos ocultos nascimentos:
A, negro corpete felpudo em que as moscas, aos centos,
Revolteiam por onde os cruéis fedores se sentem mais,

Golfos de treva; E, canduras dos vapores e das tendas,
Cumes de altivos glaciares, reis brancos, trémulas sombrinhas;
I, púrpuras, sangue cuspido, as belas bocas escarninhas
Em sua cólera ou, da embriaguez, percorrendo as sendas;

U, ciclos, divino ondular dos mares verdejando sem fugas,
Paz das campinas polvilhadas pelo gado, paz das rugas
Que a alquimia imprime na alta fronte dos estudiosos;

O, Supremo Clarim, pleno de raros estridores facundos,
Silêncios atravessados por Anjos e por Mundos:
– O, o omega, a emanação violeta dos Seus Olhos! –

***

A estrela banhou de rosa a polpa de tuas orelhas
O infinito cobriu a branco de tua nuca a teu ventre
O orvalho marinho arruivou tuas tetas vermelhas
E o Homem sangrou negro a teu flanco eminente…

***

Que são para nós, minh’alma, essas toalhas de sangue
E de braseiro, e mil assassínios, e os longos gritos
De raiva, o soluçar de todo inferno donde se expande
A desordem; e o Aquilão ainda varrendo os detritos
E toda a vingança? Nada!…- oh, mas sim, assim mesmo
Nós a queremos! Industriais, príncipes, todo o senado,
Perecei! potência, justiça, história, agonizai a esmo!
É-nos devido. O sangue! O sangue! O flamejar dourado!
Tudo pela guerra, pela vingança, pelo sagrado terror,
Meu Espírito! Lancemo-nos a eles à dentada: Ah! Passai,
Repúblicas deste mundo! E todo e qual imperador,
Os regimentos, os colonos, os povos todos, cessai!
Quem removeria os turbilhões do fogo encolerizado,
Senão nós e aqueles que nós nos imaginamos irmãos?
A nós! Romanescos amigos: isto será do vosso agrado.
Nunca trabalharemos, ó vagas de fogo em nossas mãos!
Europa, Ásia, América, Oceania, todos desaparecei.
A nossa marcha vingadora tudo tem já ocupado,
Cidades e campos! – Arrasados seremos toda a grei!
Os vulcões saltarão! e o oceano, ele mesmo espancado…
Oh! meus amigos! – minh’alma, é certo, eles são irmãos:
Negros desconhecidos, se fôssemos! Vamos! Vamos!
Ó desdita! Sinto em mim que estremecem, solos anciãos,
Sob mim cada vez mais vosso! os solos que pisamos,
Não é nada, porém! Aqui estou! Aqui estou eu ainda.

rimbaud-p

RECORDAÇÃO

1

A água clara; como o sal dessas lágrimas de pueril tristeza
O assalto ao sol das brancuras dos corpos das damas;
a seda, em desordem e a pura flor-de-lis, auriflamas
sob as muralhas de que alguma donzela assumiu a defesa;
o recreio dos anjos; – Não… a corrente de oiro que se anima
move os braços negros, pesados, e bem frescos de ervado. Ela
sombria, tendo o Céu azul por tecto de cama, toda se desvela
a tomar por cortinados as sombras da ponte e da colina.

2

Eh! o húmido lajedo levanta já seus límpidos borbulhares!
A água guarnece de oiro pálido e sem fundo os leitos armados.
As rapariguinhas nos seus vestidos verdes e desbotados
Chegam aos salgueiros, donde partem as indomadas aves.
Mais pura ainda que um luís, amarela e quente pálpebra
o malmequer-dos-brejos – tua fé conjugal, ó a Esposa! –
ao ardente meio-dia, de seu terno espelho, suspeitosa
nos céus cinzentos de calor a Esfera rosa e cara.

3

A Senhora tem-se bem de pé no meio dos amplos prados,
onde próximos se espalham os filhos do trabalho; a sombrinha
em mão; calcando aos pés a umbela; altiva, não se aninha;
miúdos por ali estão lendo, na verdura florida deitados,
o seu livro de marroquim vermelho! Desditosos, Ele, como
mil anjos brancos que se separassem a meio da estrada,
afasta-se já bem para lá da montanha! Ela, enregelada,
e negra, corre! após a partida do homem sem rumo!

4

Remorso dos jovens e espessos braços de ervado puro!
Oiro das luas de Abril no coração do santo leito! Alegria
dos estaleiros ribeirinhos ao abandono, entregues à mestria
das tardes de Agosto que faziam germinar este monturo!
Que ela chore, agora, sob as muralhas! o hálito nefando
dos choupos, vindo lá do alto, aí está por único vento.
Depois, é o lençol, sem reflexos, sem nascente, cinzento:
um velho, dragando, na sua barca imóvel, aí vai penando.

5

Joguete que fui deste lustro de água triste, não pude aí tomar,
ó canoa imobilizada! oh! braços curtos demais! nem uma
nem a outra flor: nem a amarela, aquela que me importuna,
ali; nem a azul, a amiga da água cor de cinza e do luar.
Ah! o pó nos salgueiros que um golpe de asa sacode a mal!
As rosas dos canaviais desde há tanto já devoradas!
Minha canoa, sempre imóvel; e a suas amarras atiradas
Ao fundo deste lustro de água sem margens, – a que lodaçal?

 

rimbaud-p

MIGUEL E CRISTINA

Que se lixe então se o sol abandonar estas margens!
Foge, claro dilúvio! Eis aí a sombra dos caminhos.
Nos salgueiros, e também no velho pátio principal
A tempestade atira suas largas gotas em remoinhos.
Ó cem cordeiros, louros soldados do idílio,
Aquedutos, tufos de urze definhados por metade,
Fugi! Planície, desertos, pradaria, horizontes
Estão no toucador escarlate da tempestade!
Cão negro, pastor trigueiro de que se envola o capote,
Fujam da hora que vem de iluminações superiores;
Louro rebanho, quando aqui nadam treva e enxofre,
Tratai bem de vos retirar para abrigos melhores.
Mas eu, Senhor! Eis pois que o meu Espírito voa,
Ao encontro dos céus gelados de escarlate, sob as
Nuvens celestes que correm como um rio se escoa
Sobre cem Solognes longas como linhas férreas.
Eis aí mil lobos, e mil outras selvagens sementes
Trazidas, não sem amar dos doces lírios a beleza,
Por esta mística tarde das trovoadas inclementes
Sobre a Europa antiga onde cem hordas farão presa!
Depois, o clarão do luar! por todo aquele rossio,
Ruborizando suas faces aos negros céus, os guerreiros
Cavalgam devagar seus brancos corcéis bem ligeiros!
Os calhaus soam à passagem do tropel pleno de brio!
– E verei eu o claro vale e o bosque amarelado,
A esposa de olhos azuis, o homem de face rubra – ó Gália,
E o branco cordeiro pascal, a seus pés prostrado,
– Miguel e Cristina, – e Cristo! – o final do Idílio.

***

É ela almeia?… às primeiras horas doloridas
Destruir-se-à ela como as flores desfalecidos…
Perante a magnífica extensão onde se sente
Respirar a cidade imensamente florescente!

 

 

É belo demais! É belo demais! mas é necessário
– Para a Pescadora e para a canção do Corsário,
E também porque as derradeiras máscaras ainda
Acreditaram nas festas da noite sobre a maré limpa!

Petit poeme des poissons de la mer

artaud_10ano

 

Antonin Artaud

Petit poème des poissons de la mer 

Suivi de citations

 

Je me suis penché sur la mer 

Pour communiquer mon message 

Aux poissons: 

«Voilà ce que je cherche et que je veux savoir.» 
Les petits poissons argentés 

Du fond des mers sont remontés 

Répondre à ce que je voulais. 
La réponse des petits poissons était: 

«Nous ne pouvons pas vous le dire 

Monsieur 

PARCE QUE» 

Là la mer les a arrêtés. 
Alors j’ai écarté la mer 

Pour les mieux fixer au visage 

Et leur ai redit mon message: 

«Vaut-il mieux être que d’obéir?» 
Je le leur redis une fois, je leur dis une seconde 

Mais j’eus beau crier à la ronde 

Ils n’ont pas voulu entendre raison! 
Je pris une bouilloire neuve 

Excellente pour cette épreuve 

Où la mer allait obéir. 
Mon coeur fit hamp, mon coeur fit hump 

Pendant que j’actionnais la pompe 

À eau douce, pour les punir. 
Un, qui mit la tête dehors 

Me dit: «Les petits poissons sont tous morts.» 
«C’est pour voir si tu les réveilles, 

Lui criai-je en plein dans l’oreille, 

Va rejoindre le fond de la mer.» 
Dodu Mafflu haussa la voix jusqu’à hurler en déclamant ces trois derniers vers, 

et Alice pensa avec un frisson: «Pour rien au monde je n’aurai voulu être ce messager!» 
Celui qui n’est pas ne sait pas 

L’obéissant ne souffre pas. 
C’est à celui qui est à savoir 

Pourquoi l’obéissance entière 

Est ce qui n’a jamais souffert 
Lorsque l’être est ce qui s’effrite 

Comme la masse de la mer. 
Jamais plus tu ne seras quitte, 

Ils vont au but et tu t’agites. 

Ton destin est le plus amer. 
Les poissons de la mer sont morts 

Parce qu’ils ont préféré à être 

D’aller au but sans rien connaître 

De ce que tu appelles obéir. 
Dieu seul est ce qui n’obéit pas

Tous les autres êtres ne sont pas 

Encore, et ils souffrent. 
Ils souffrent ni vivants ni morts. 

Pourquoi? 
Mais enfin les obéissants vivent, 

On ne peut pas dire qu’ils ne sont pas. 
Ils vivent et n’existent pas. 

Pourquoi? 
Pourquoi? Il faut faire tomber la porte 

Qui sépare l’Être d’obéir! 
L’Être est celui qui s’imagine être 

Être assez pour se dispenser 

D’apprendre ce que veut la mer… 
Mais tout petit poisson le sait! 

Il y eut une longue pause. 

«Est-ce là tout? demanda Alice timidement.» 

 

 

notes:

  «Je ne suis né que de ma douleur»
Lettre du 7 septembre 1945
  

   «Ce refus imbécile de s’avancer jusqu’aux idées» 

Supplément au Voyage au Pays des Tarahumaras.
  

  «Avec moi c’est l’absolu ou rien, et voilà ce que j’ai à dire à ce monde qui n’a ni âme ni agar-agar.» 

Lettre du 9 octobre 1945.
  

  «Je ne commanderai pas à mes désirs et à mes envies, mais je ne veux pas non plus qu’ils me conduisent, je veux être ces désirs et ces envies» 

Lettre du 20 septembre 1945.
  

  «Si je suis poète ou acteur ce n’est pas pour écrire ou pour déclamer des poésies, mais pour les vivre […] Je veux que les poèmes de François Villon, de Charles Baudelaire, d’Edgar Poe ou de Gérard de Nerval deviennent vrais et que la vie sorte des livres» Lettre du 6 octobre 1945.
  

  «J’aime […] les poèmes des suppliciés du langage qui sont en perte dans leurs écrits, et non de ceux qui s’affectent perdus pour mieux étaler leur science et de la perte et de l’écrit. […] Tout ce qui n’est pas un tétanos de l’âme ou ne vient pas d’un tétanos de l’âme comme les poèmes de Baudelaire ou d’Edgar Poe n’est pas vrai et ne peut être reçu dans la poésie.» Lettre du 22 septembre 1945.
  

  «On n’a pas le droit d’écrire comme cela, un poème qui est hors du coeur, hors de l’affre et du sanglot coeur, un poème qui n’a pas été souffert comme: 

Dites-moi où, dans quel pays 

Est Flora la belle Romaine, 

La royne Blanche comme un lys 

Qui chantait à voix de sirène» 

Lettre du 20 septembre 1945.
  

  «Les gens sont bêtes. La littérature vidée. Il n’y a plus rien ni personne, l’âme est insane, il n’y a plus d’amour, plus même de haine, tous les corps sont repus, les consciences résignées. Il n’y a même plus l’inquiétude qui a passé dans le vide des os, il n’y a plus qu’une immense satisfaction d’inertes, de boeufs d’âme, de serfs de l’imbécillité qui les opprime et avec laquelle ils ne cessent nuit et jour de copuler, de serfs aussi plats que cette lettre où j’essaie de manifester mon exaspération contre une vie menée par une bande d’insipides qui ont voulu à tous imposer leur haine de la poésie, leur amour de l’ineptie bourgeoise dans un monde intégralement embourgeoisé, avec tous les ronronnements verbaux des soviets, de l’anarchie, du communisme, du socialisme, du radicalisme, des républiques, des monarchies, des églises, des rites, des rationnements, des contingentements, du marché noir, de la résistance.»  Lettre du 17 septembre 1945. 

 

  «Les asiles d’aliénés sont des receptacles de magie noire, conscients et prémédités. Et ce n’est pas seulement que les médecins favorisent la magie par leur thérapeutique qu’ils raffinent, c’est qu’ils en font. S’il n’y avait pas de médecins, il n’y aurait pas de malades, car c’est par les médecins, et non par les malades, que la société a commencé. Ceux qui vivent, vivent des morts, et il faut aussi que la mort vive… Il n’y a rien comme un asile d’aliénés pour couver doucement la mort, et tenir en couveuse les morts. Cela a commencé 4000 ans avant J.C., cette technique thérapeutique de la mort longue. Et la médecine moderne, complice en cela de la plus sinistre et crapuleuse magie, passe ces morts à l’électrochoc ou à l’insulinothérapie, afin de bien, chaque jour, vider ces haras d’hommes de leur moi, et de les présenter, ainsi vides, ainsi fantastiquement disponibles et vides, aux obscènes sollicitations anatomiques et atomiques de l’état appelé «bardot». Livraison du barda de vivre aux exigences du non-moi. Le Bardot est l’astre de mort par lequel le moi tombe en flasque, et il y a, dans l’électrochoc, un état flasque, par lequel passe tout traumatisé. Ce qui lui donne non plus à cet instant de connaître, mais affreusement et désespérément méconnaître ce qu’il fut quand il était soi. J’y suis passé et ne l’oublierai pas.» Entrevue radiophonique. 

 

um novo ciclo se aproxima

deus-solar

 

ele mergulha no ventre da mãe ao escurecer
ergue-se pela manhã
e
completa o seu ciclo no solstício de inverno
ele
é um homem barbudo com casco e cornos de bode
é o guardião das entradas e dos círculos mágicos traçados para o ritual
é o deus dos bosques
o rei do carvalho e senhor das matas
é o que morre
e
sempre renasce
ele nasce da deusa – porque é o seu complemento
e
consigo, carrega os atributos
os da inteligência
da fertilidade
da alegria
da coragem
e
do optimismo

ele é a força do sol

o que detém os segredos da morte
e
do renascimento

 

do mito:

o deus nasceu da deusa | cresceu | cresceu e apaixonou-se | por ela | pela deusa | e a deusa engravidou | engravidou e | quando o inverno chega | o deus morre | morre e renasce | renasce da deusa |

 

o mito contém | contém os ciclos | os da natureza | e no verão | no verão ele | ele é forte | forte e | e vigoroso | no outono | no outono envelhece | envelhece e | e morre | morre no inverno | morre mas | renasce de novo | … é primavera.

 

incestuoso?
por ser filho e consorte da deusa?

estamos a falar de um mito. um mito do tamanho do homem.
estamos a falar dum rito – um rito praticado por povos primitivos
e
para quem, tal conceito (incesto), nenhum sentido faria porque crentes de que
todas as coisas são geradas do ventre da grande mãe – até mesmo o próprio deus
e
se dela “saiu” a ela ele deve tornar

o solstício está a chegar e com ele o deus com cornos

com cornos
porque forte
porque sábio

morrerá
e
as bruxas e magos aguardam a chegada do fim do ciclo e preparam-se já para as comemorações do ciclo que segue
aguardam que a grande deusa gere o seu filho

o sol
o grade falo

que tornará férteis os nossos campos
não só de “ervas”
também de inteligência
para enfrentar com sabedoria o novo ano

os deuses estão mortos
este está vivo – tem cumprido os ciclos ao longo dos séculos
e
estará vivo porque o sol permanecerá radiante
e
a sua mãe e esposa – a grande deusa – estará viva, enquanto girar em torno do sol
 

vivamos o eterno kaos