CARTAS DO VISIONÁRIO E MAIS NOVE POEMAS DE ARTHUR RIMBAUD
Para GEORGES IZAMBARD
Charleville, [13] de Maio de 1871
Caro Senhor:
Eis-vos de novo professor. Devemo-nos à sociedade, dissésteis-me vós; fazeis parte do corpo dos docentes: seguis por caminhos experimentados. -Também eu sigo o princípio: cinicamente, faço-me sustentar; desencaminho alguns imbecis antigos do colégio: tudo o que possa inventar de mais estúpido, porco e reles, por palavras ou acções, a eles o deixo: pagam-me com canecas e miúdas – Stat mater dolorosa, dum pendet filius, – Devo-me à sociedade, é justo, – e tenho razão. -Também vós tendes razão, por hoje. No fundo, vós nada vedes em vosso princípio senão poesia subjectiva: a vossa obstinação em retomar a manjedoura universitária – perdão- prova-o. Mas acabareis sempre como um satisfeito que nada fez, nada tendo querido fazer. Além de que a vossa poesia subjectiva será sempre horrivelmente fastidiosa. Um dia, espero, – muitos outros esperam a mesma coisa – verei no vosso princípio a poesia objectiva, vê-la-ei mais sinceramente que vós próprio a fareis! – Serei um trabalhador: é a ideia que me retém, quando a louca cólera me empurra para a batalha de Paris – onde tantos trabalhadores morrem agora mesmo que vos escrevo. Trabalhar agora, nunca, nunca; estou em greve.
Agora, mergulho na maior devassidão possível. Porquê? Quero ser poeta e trabalho para me tornar visionário: vós não compreendeis nada e eu não sei se saberei explicar-vos. Trata-se de atingir o desconhecido através do desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes mas é preciso ser-se forte, ter nascido poeta, e eu reconheci-me poeta. Não é de modo algum culpa minha. É falso dizer-se: eu penso. Deveria dizer- se: sou pensado. – Desculpe o trocadilho. –
Eu é um outro. Tanto pior para a madeira que se descobre violino e zomba dos inconscientes que discreteiam sobre aquilo que pura e simplesmente ignoram. Não sois Mestre para mim. Dou-vos isto: será uma sátira como vós diríeis? É poesia? Fantasia, é-o sempre. – Mas, suplico-vos, não a sublinheis com o lápis nem – demasiado – com o pensamento:
Coração Supliciado
(…………………………….)
Isto não quer dizer nada. – RESPONDA-ME: para casa do sr. Deverrière, para A. R.
Saúdo-o, de todo o coração,
Art. Rimbaud
Para PAUL DEMENY em Douai
Charleville, 15 de Maio de 1871
Resolvi dar-vos uma hora de literatura nova; começo de imediato com um salmo de actualidade:
Canto de Guerra Parisiense
(…………………………………………)
Eis agora alguma prosa sobre o futuro da poesia –
Toda a poesia antiga desemboca na poesia grega; Vida harmoniosa. Da Grécia ao movimento romântico, – Idade Média, – há alguns letrados, alguns versificadores. De Ennius a Theroldus, de Theroldus a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, relaxamento e glória de inúmeras gerações de idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. -Tivessem-lhe soprado sobre as rimas, baralhado os hemistáquios, e o Divino Idiota seria hoje tão desconhecido como o primeiro vindo, autor de Origens (1). -Após Racine, o jogo criou bolor. Durou dois mil anos!
Nem zombaria, nem paradoxo. A razão inspira-me mais certezas sobre esta matéria que fúrias teria tido um Jeune-France (2). De resto, os novos! têm por regra a liberdade de execrar os avoengos: estamos à vontade e temos tempo livre.
Nunca se julgou adequadamente o romantismo; quem o teria julgado? Os críticos!! Os românticos, que provam tão bem ser a canção raramente a obra, quer dizer o pensamento cantado e compreendido, do cantor?
Porque Eu é um outro. Se o cobre se descobre clarim, não há aí nada de culpa sua. Isso é evidente para mim: assisto à eclosão do meu pensamento: vejo-a, escuto-a: lanço um movimento com o arco: a sinfonia vai abalando as profundezas, ou salta de repente para o palco.
Se os velhos imbecis não tivessem encontrado do Eu apenas a significação falsa, não tínhamos que varrer esses milhões de esqueletos que, desde há um tempo infinito!, acumularam os produtos da sua inteligência vesga, proclamando-se autores!
Na Crécia, já o disse, versos e liras ritmam a Acção. Depois, música e rimas são jogos, refrigério. O estudo deste passado encanta os curiosos: muitos aprazem-se a renovar estas antiguidades: – é para eles. A inteligência universal sempre arremessou as suas ideias com naturalidade; os homens recolhiam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se em conformidade, escreviam-se livros: tal era o sentido das coisas, o homem não se trabalhando, não estando ainda desperto ou não ainda mergulhado na plenitude do grande sonho. Funcionários, escreventes: autor, criador, poeta, esse homem nunca existiu!
O primeiro estudo para o homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, por inteiro; ele procura a sua alma, inspecciona-a, experimenta-a, apreende-a. Desde que a sabe, deve cultivá-Ia; isso parece simples: em todo o cérebro se dá um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; muitos outros atribuem-se o seu próprio progresso intelectual! – Mas do que se trata é de tornar a alma monstruosa: a exemplo dos comprachicos (3), pois! Imagine um homem implantando e cultivando verrugas no seu próprio rosto.
Digo que é necessário ser visionário, fazer-se visionário.
O Poeta faz-se visionário por um prolongado, imenso e calculado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele próprio procura, esgota em si todos os venenos para deles guardar apenas as quintessências. Inefável tortura em que ele precisa de toda a fé, de toda a sobre-humana força, em que ele se torna entre todos o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, – e o supremo Sábio! – Pois ele atinge odesconhecido! Uma vez que cultivou a sua alma, já de si rica como nenhuma! Ele atinge o desconhecido e, acaso, enlouquecido, acabasse por perder a inteligência das suas visões, tê-las-à visto! Que ele estoire no seu sobrevôo pelas coisas inauditas e inomináveis: virão outros horríveis trabalhadores; começarão pelos horizontes onde o outro se abateu!
– A sequência dentro de seis minutos –
Aqui intercalo um segundo salmo fora do texto: queira dispensar um ouvido complacente, – e toda a gente ficará encantada. – Tenho o arco na mão, começo:
As Minhas Pequenas Apaixonadas
(………………………………………………….)
Pronto. E repare bem que se eu não receasse fazer-vos desembolsar mais de 60 c. de portes, – eu, pobre assombrado, que desde há sete meses não embolso uma única moeda de bronze! – enviar-vos-ia ainda os meus Amantes de Paris, cem hexâmetros, caro senhor, e a minha Morte de Paris, duzentos hexâmetros! –
Retomando:
É pois o poeta, verdadeiramente, ladrão de fogo.
Ele tem a seu cargo a humanidade, os animais mesmo; deve fazer sentir, palpar, escutar as suas invenções; se aquilo que ele transmite de lá tem forma, ele dá a forma; se é informe, ele dá o informe. Achar uma língua;
– De resto, sendo toda a palavra uma ideia, o tempo de uma linguagem universal virá! É preciso ser-se académico – mais morto que um fóssil, – para compilar um dicionário, seja de que Iíngua for. Um ser fraco que se meta a pensar sobre a primeira letra do alfabeto, e poderá rapidamente precipitar-se na loucura! –
Esta língua será de alma para alma, compreendendo tudo, perfumes, sons, cores, o pensamento enganchado no pensamento, desfiando-o. O poeta definiria a quantidade de desconhecido despertando em seu tempo na alma universal: ele daria mais – que a fórmula do seu pensamento, que a marcação da sua marcha para o Progresso. Enormidade tornando-se norma, absorvida por todos, ele será verdadeiramente um multíplícador de progresso!
Este futuro será materialista, bem o vedes. – Sempre repletos do Número e daHarmonia, estes poemas serão feitos para permanecer. – No fundo, será ainda um pouco a Poesia grega.
A arte eterna teria as suas funções; assim como os poetas são cidadãos. A Poesia não ritmará mais a acção; ela estará na dianteira.
Estes poetas serão! Quando for quebrada a infinda servidão da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem, – até aqui abominável, – tendo-lhe rendido a vez, ela será poeta, também ela! A mulher penetrará no desconhecido! Os seus mundos de ideias diferirão dos nossos? – Ela achará coisas estranhas, insondáveis, repugnantes, deliciosas; nós tomá-las-emos, nós compreendê-Ias-emos.
Entretanto, exijamos aos poetas o que for de novo, – ideias e formas. Todos os habilidosos pensariam rapidamente ter já satisfeito esta exigência. – Não é isso!
Os primeiros românticos foram visionários sem disso se darem bem conta; o cultivo de suas almas começou nos acidentes: locomotivas abandonadas, mas a queimar, que a espaços retomam ainda os carris. – Lamartine é por vezes visionário, mas a forma velha estrangula-o. – Hugo, por demais cabeçudo, soube bem ver nos seus últimos volumes; Os Miseráveis são um verdadeiro poema. Folheio Os Castigos; Stella oferece mais ou menos o alcance da vista de Hugo. Demasiado Belmontet e Lamennais, demasiados Jéhovahs e colunas, velhas enormidades perimidas.
Musset é catorze vezes execrável para nós, gerações dolorosas e tomadas de visões, – que a sua preguiça de anjo insultou! Oh! os contos e os provérbios fastidiosos! oh as noites! oh Rolla (4), oh Namouna, oh a Coupe! tudo é francês, quer dizer detestável no supremo grau; francês, não parisiense! Ainda uma obra desse odioso génio que havia já inspirado Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine, comentado pelo Sr. Taine! Primaveril, o espírito de Musset! Encantador, o seu amor! Eis aí pintura sobre esmalte, poesia sólida! Saborear-se-á durante muito tempo a poesia francesa, mas em França. Qualquer rapaz talhista está à altura de desbobinar uma apóstrofe Rollastra, qualquer seminarista transporta as suas quinhentas rimas no segredo de um canhenho. Aos quinze anos, estes impulsos de paixão põem os jovens a uivar à lua; aos dezasseis anos, eles contentam-se já em recitá-los com coração; aos dezoito anos, aos dezassete anos mesmo, todo o colegial dispondo dos meios, faz o Rolla, escreve um Rolla! Talvez alguns ainda morram disso. Musset não soube fazer nada: tinha lá algumas visões por detrás da gaze dos cortinados: fechou-lhes os olhos. Francês, Pavoneador, arrastado do botequim para as estantes das escolas, o belo morto está morto e, agora, não nos demos sequer ao trabalho de o despertar com as nossas abominações!
Os segundos românticos são bem visionários: Th. Gautier, Leconte de Lisle, Th. de Banville. Mas sendo a prospecção do invisível e a escuta do inaudito coisas diversas de retomar o espírito das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro visionário, rei dos poetas, um verdadeiro Deus. Ainda viveu porém num meio demasiado artista; e a forma, que lhe é tão louvada, é mesquinha: as invenções de desconhecido reclamam formas novas.
Afeitos às velhas formas, entre os inocentes, A. Renaud, – criou o seu Rolla; – L. Grandet, – criou o seu Rolla; – os gauleses e os Musset, G. Lafenestre, Coran, CI. Popelin, Soulary, L. Salles; Os académicos, Marc, Aicard, Theuriet; os mortos e os imbecis, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, os Deschamp, os Desessarts; os jornalistas, L. Cladel, Robert Luzarches, X. de Ricard; os fantasistas, C. Mendès; os boémios; as mulheres; os talentos, Leon Dierx e Sully Prudhomme, Coppée; – a nova escola, dita parnasiana, tem dois visionários, Albert Mérat e Paul Verlaine, um verdadeiro poeta. – Eis, pois (5). – Trabalho assim para me tornar visionário. – E terminemos por um canto piedoso.
Prostrações
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Seríeis execrável se não me respondêsseis: rapidamente, pois dentro de oito dias estarei talvez em Paris.
Até à vista.
A. Rimbaud
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NOTAS:
(1) – Ennius – “le premier venu” é um poeta latino, autor dos ‘Anais’ e não de ‘Origens’ como lhe é aqui imputado.
(2) – Jeune France: Movimento literário, reunido em torno de Théophile Gautier e Gerard de Nerval, representando a tendência extrema do romantismo francês de 1830.
(3) – Comprachicos: Indivíduos que se dedicavam ao comércio de crianças com vista a serem exploradas na mendicidade, por vezes após sofrerem graves mutilações. São referidos num romance de Vitor Hugo, «L’Homme qui rit».
(4) Rolla: Um poema de Alfred de Musset de temática histórica no seu estilo sombrio; Musset era então alvo de vários ataques nomeadamente de Baudelaire que o apelidou de “mestre dos peralvilhos”.
(5) – Este impressionante desfile literário, de personalidades pela sua maior parte hoje totalmente desconhecidas, é ordenado segundo o Parnasse Contemporain de 1866 e suas edições de 1869.
NOVE POEMAS
OS POETAS DE SETE ANOS
Ao Sr. P. Demeny.
E a mãe, encerrando o livro grande do dever,
Retirava-se altiva e satisfeita sem poder ver,
Nos olhos azuis e sob a fronte plena de elevação,
A alma do seu menino assolada pela aversão.
Todo o dia ele transpirava de obediência; inteligente;
Mas alguns tiques negros, certos rasgos da sua mente,
Pareciam provar nele as mais azedas hipocrisias.
Na sombra dos corredores, sob bolorentas tapeçarias
De passagem, tirava a Iíngua de fora, as mãos fechadas
Na virilha, os olhos cerrando-se sobre visões pontilhadas.
Uma porta se abria sobre a noite: a lâmpada da escada
Denunciava-o lá em cima, agonizando na balaustrada,
Sob essa enseada de dia pendente do tecto. No Verão
Sobretudo, estúpido, vencido, era sua obstinação
Encerrar-se de novo no fresco remanso das latrinas:
Aí meditava ele, tranquilo e abrindo bem as narinas.
Quando, lavado dos odores do dia, nas traseiras do lar,
O pequeno jardim, pelo Inverno, se banhava de luar,
jacente ao pé de um muro, enterrado na marga
E por visões esmagando o seu olhar que se embarga,
Ele escutava o fervilhar das fungosas latadas.
Piedade! Essas crianças apenas eram a ele chegadas,
Delgadas, a cara descoberta, olhos na face desmaiados,
Ocultando uns magros dedos negros na lama amarelados
Sob as velhíssimas roupas tresandando a excremento,
Conversavam com uma doçura idiota pedindo lamento!
E se, surpreendendo-o entregue a piedades imundas,
A mãe se horrorizava; as carícias mais profundas
Do filho se precipitavam sobre este anseio protector.
Era bom. Doce, o seu olhar azul – enganador!
Aos sete anos, fazia ele romances, sobre a vida
Do grande deserto em que luz a Liberdade remida,
Florestas, sóis, rios, savanas! – Ele se inspirava
Em jornais ilustrados onde, corado, observava
Espanholas de riso solto e também italianas.
Quando vinha, olhos pardos, louca, em vestes indianas
– Oito anos, – a filha dos operários da casa ao lado,
Essa miúda brutal, e após que ela tivesse saltado,
A um canto, sobre o seu dorso, agitando as tranças,
Estando sob ela, mordia-lhe as nádegas distensas,
Pois ela não trazia nunca calcinhas, era sabido;
-E por ela sendo, a punhos e calcanhares, contundido,
Retirava-se, guardando de sua pele o vivo sabor.
Temia ele apenas os domingos de dezembro sem cor,
Em que, o cabelo abrilhantado, sobre uma mesa de centro,
Lia passagens numa bíblia de bordos verde-coentro;
Sonhos opressivos tomavam-no à noite quando recolhia.
Não amava Deus; mas os homens que ao arruivar do dia,
Enegrecidos, em blusa, ele via regressar ao arredor
Onde os pregoeiros, com três rufares de um tambor,
Em torno dos editais fazem rir e resmonear a multidão.
– Ele sonhava a várzea amorosa em que uma agitação
Luminosa, perfumes sadios, pubescências douradas,
Marulham calmamente e retomam suas aéreas moradas.
E assim ele saboreando sobretudo as coisas sombrias,
Quando, em seu aposento despido, corridas as gelosias,
O quarto alto e azul, duramente tomado de humidade,
Lia o seu romance, aí repensado com tenacidade,
Cheio de pesados céus ocres e florestas inundadas,
De pétalas de carne em lenhos siderais transmutadas,
Vertigem, desabamentos, derrotas e compaixão!
– Enquanto do bairro se ia levantando a excitação,
Em baixo – só, em seus lençóis de pano-cru envolto,
E pressentindo já violentamente o velejar solto.
AS RECORDAÇÕES DO VELHO IDIOTA
Perdão meu pai!
Jovem, nas feiras de qualquer vilória,
Procurava eu, não a barraca de tiro, a velha história,
Mas o sítio carregado de gritos em que os jumentos,
Exaustos, cediam de si aqueles longos tubos sangrentos
Que não compreendo ainda!…
E minha mãe então,
De quem a camisa largava aquela amarga exalação,
Algo amarrotada em baixo e amarela como um fruto,
Minha mãe que se deitava com certo ruído – produto
Do trabalho porém – minha mãe com sua coxa cheia
De mulher madura, com seus rins em que pregueia
O branco linho, me dava aqueles calores que silencio!…
Vergonha mais crua e calma, era quando, pelo frio
Minha irmã mais nova, no seu regresso da escola,
Tendo arrastado sobre o gelo os tamancos e a sacola,
Mijava, olhando que se escapava de seu labiozinho
Rosado e bem apertado, aquele travesso fiozinho!…
Ó perdão!
Sonhava eu com meu pai por vezes:
Ao serão, o jogo de cartas e os seus ditos soezes,
O vizinho, e eu que era retirado, coisas conhecidas…
– Pois um pai é perturbador – e as coisas concebidas!…
Seu joelho, acariciador por vezes; as suas calças
De que meu dedo desejaria abrir a fenda,…- oh! caraças!
Para haver, de meu pai, a ponta, grande, negra e dura,
Dele cuja mão peluda me embalava!…
E aqui se descura
O púcaro, o pequeno prato de asa, entrevisto lá acima,
Os almanaques de capa vermelha, e aquela cestinha
De pano, e a Bíblia, e os lugares todos, e a criada,
A Virgem santa e o crucifixo…
Oh! que ninguém, por nada,
Foi tantas vezes perturbado, assim como espantado!
E nesta hora, enfim, seja eu de tudo aqui perdoado:
Pois que os infectos sentidos me apanharam nos seus redis,
Solenemente confesso todos estes meus crimes juvenis!…
………………………………………………..
E já agora! – seja-me enfim permitido falar ao Senhor!
Porquê a puberdade tardia e esse indizível temor
Da glande tenaz por demais consultada? Porquê a sombra
Tão lenta no baixo ventre? e esse terror que se encontra
Cumulando sempre a alegria, tal saibro na corrente?
– Eu, estive sempre estupefacto! De quê ser sabedor?
……………………………………………….
Perdoado?
Retome o seu escalda-pés azul, não foi nada,
Meu pai.
Ó esta infância!
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…………………..- e retiremo-nos a cauda!
ORAÇÃO DA TARDE
Vivo eu sentado, tal um anjo às mãos de um barbeiro,
Empunhando uma caneca de enormes caneluras,
O pescoço e o hipogástrio curvos, o cachimbo inteiro
Nos dentes, sob o ar enfunado por velas imaturas.
Tais os excrementos bem frescos num velho pombal,
Mil Sonhos em mim alastram sua doce calcinação:
Depois por instantes meu triste coração é um pinheiral
Sangrado de ouro jovem e sombrio pela resinação.
Depois, quando já engoli meus sonhos em amenidade,
Volto-me, com umas trinta canecas viradas de borco,
E recolho enfim, para verter a amarga necessidade:
Doce como o próprio Senhor do cedro e do hissopo,
Mijo para os escuros céus, longe e em profundidade,
Os grandes heliotrópios dando seu assentimento choco.
VOGAIS
A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul: vogais,
Algum dia direi desses vossos ocultos nascimentos:
A, negro corpete felpudo em que as moscas, aos centos,
Revolteiam por onde os cruéis fedores se sentem mais,
Golfos de treva; E, canduras dos vapores e das tendas,
Cumes de altivos glaciares, reis brancos, trémulas sombrinhas;
I, púrpuras, sangue cuspido, as belas bocas escarninhas
Em sua cólera ou, da embriaguez, percorrendo as sendas;
U, ciclos, divino ondular dos mares verdejando sem fugas,
Paz das campinas polvilhadas pelo gado, paz das rugas
Que a alquimia imprime na alta fronte dos estudiosos;
O, Supremo Clarim, pleno de raros estridores facundos,
Silêncios atravessados por Anjos e por Mundos:
– O, o omega, a emanação violeta dos Seus Olhos! –
***
A estrela banhou de rosa a polpa de tuas orelhas
O infinito cobriu a branco de tua nuca a teu ventre
O orvalho marinho arruivou tuas tetas vermelhas
E o Homem sangrou negro a teu flanco eminente…
***
Que são para nós, minh’alma, essas toalhas de sangue
E de braseiro, e mil assassínios, e os longos gritos
De raiva, o soluçar de todo inferno donde se expande
A desordem; e o Aquilão ainda varrendo os detritos
E toda a vingança? Nada!…- oh, mas sim, assim mesmo
Nós a queremos! Industriais, príncipes, todo o senado,
Perecei! potência, justiça, história, agonizai a esmo!
É-nos devido. O sangue! O sangue! O flamejar dourado!
Tudo pela guerra, pela vingança, pelo sagrado terror,
Meu Espírito! Lancemo-nos a eles à dentada: Ah! Passai,
Repúblicas deste mundo! E todo e qual imperador,
Os regimentos, os colonos, os povos todos, cessai!
Quem removeria os turbilhões do fogo encolerizado,
Senão nós e aqueles que nós nos imaginamos irmãos?
A nós! Romanescos amigos: isto será do vosso agrado.
Nunca trabalharemos, ó vagas de fogo em nossas mãos!
Europa, Ásia, América, Oceania, todos desaparecei.
A nossa marcha vingadora tudo tem já ocupado,
Cidades e campos! – Arrasados seremos toda a grei!
Os vulcões saltarão! e o oceano, ele mesmo espancado…
Oh! meus amigos! – minh’alma, é certo, eles são irmãos:
Negros desconhecidos, se fôssemos! Vamos! Vamos!
Ó desdita! Sinto em mim que estremecem, solos anciãos,
Sob mim cada vez mais vosso! os solos que pisamos,
Não é nada, porém! Aqui estou! Aqui estou eu ainda.
RECORDAÇÃO
1
A água clara; como o sal dessas lágrimas de pueril tristeza
O assalto ao sol das brancuras dos corpos das damas;
a seda, em desordem e a pura flor-de-lis, auriflamas
sob as muralhas de que alguma donzela assumiu a defesa;
o recreio dos anjos; – Não… a corrente de oiro que se anima
move os braços negros, pesados, e bem frescos de ervado. Ela
sombria, tendo o Céu azul por tecto de cama, toda se desvela
a tomar por cortinados as sombras da ponte e da colina.
2
Eh! o húmido lajedo levanta já seus límpidos borbulhares!
A água guarnece de oiro pálido e sem fundo os leitos armados.
As rapariguinhas nos seus vestidos verdes e desbotados
Chegam aos salgueiros, donde partem as indomadas aves.
Mais pura ainda que um luís, amarela e quente pálpebra
o malmequer-dos-brejos – tua fé conjugal, ó a Esposa! –
ao ardente meio-dia, de seu terno espelho, suspeitosa
nos céus cinzentos de calor a Esfera rosa e cara.
3
A Senhora tem-se bem de pé no meio dos amplos prados,
onde próximos se espalham os filhos do trabalho; a sombrinha
em mão; calcando aos pés a umbela; altiva, não se aninha;
miúdos por ali estão lendo, na verdura florida deitados,
o seu livro de marroquim vermelho! Desditosos, Ele, como
mil anjos brancos que se separassem a meio da estrada,
afasta-se já bem para lá da montanha! Ela, enregelada,
e negra, corre! após a partida do homem sem rumo!
4
Remorso dos jovens e espessos braços de ervado puro!
Oiro das luas de Abril no coração do santo leito! Alegria
dos estaleiros ribeirinhos ao abandono, entregues à mestria
das tardes de Agosto que faziam germinar este monturo!
Que ela chore, agora, sob as muralhas! o hálito nefando
dos choupos, vindo lá do alto, aí está por único vento.
Depois, é o lençol, sem reflexos, sem nascente, cinzento:
um velho, dragando, na sua barca imóvel, aí vai penando.
5
Joguete que fui deste lustro de água triste, não pude aí tomar,
ó canoa imobilizada! oh! braços curtos demais! nem uma
nem a outra flor: nem a amarela, aquela que me importuna,
ali; nem a azul, a amiga da água cor de cinza e do luar.
Ah! o pó nos salgueiros que um golpe de asa sacode a mal!
As rosas dos canaviais desde há tanto já devoradas!
Minha canoa, sempre imóvel; e a suas amarras atiradas
Ao fundo deste lustro de água sem margens, – a que lodaçal?
MIGUEL E CRISTINA
Que se lixe então se o sol abandonar estas margens!
Foge, claro dilúvio! Eis aí a sombra dos caminhos.
Nos salgueiros, e também no velho pátio principal
A tempestade atira suas largas gotas em remoinhos.
Ó cem cordeiros, louros soldados do idílio,
Aquedutos, tufos de urze definhados por metade,
Fugi! Planície, desertos, pradaria, horizontes
Estão no toucador escarlate da tempestade!
Cão negro, pastor trigueiro de que se envola o capote,
Fujam da hora que vem de iluminações superiores;
Louro rebanho, quando aqui nadam treva e enxofre,
Tratai bem de vos retirar para abrigos melhores.
Mas eu, Senhor! Eis pois que o meu Espírito voa,
Ao encontro dos céus gelados de escarlate, sob as
Nuvens celestes que correm como um rio se escoa
Sobre cem Solognes longas como linhas férreas.
Eis aí mil lobos, e mil outras selvagens sementes
Trazidas, não sem amar dos doces lírios a beleza,
Por esta mística tarde das trovoadas inclementes
Sobre a Europa antiga onde cem hordas farão presa!
Depois, o clarão do luar! por todo aquele rossio,
Ruborizando suas faces aos negros céus, os guerreiros
Cavalgam devagar seus brancos corcéis bem ligeiros!
Os calhaus soam à passagem do tropel pleno de brio!
– E verei eu o claro vale e o bosque amarelado,
A esposa de olhos azuis, o homem de face rubra – ó Gália,
E o branco cordeiro pascal, a seus pés prostrado,
– Miguel e Cristina, – e Cristo! – o final do Idílio.
***
É ela almeia?… às primeiras horas doloridas
Destruir-se-à ela como as flores desfalecidos…
Perante a magnífica extensão onde se sente
Respirar a cidade imensamente florescente!
É belo demais! É belo demais! mas é necessário
– Para a Pescadora e para a canção do Corsário,
E também porque as derradeiras máscaras ainda
Acreditaram nas festas da noite sobre a maré limpa!
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