do Prazer do Auto Amor . do pensamento de Austin Osman Spare

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KIA

Deus, religiões, fé, moral, mulheres, etc. utilizados para expressar diferentes formas de controle e manifestações de desejo, são expressões marcadas por diversas crenças: – serão, pois, ideias de unidade incutidas pelo medo – expressões que carregam conceitos próprios daquilo que entendemos por servidão.

Kia: é a liberdade absoluta e, ao gozar desse estatuto (liberdade absoluta), será suficientemente poderosa.
Kia, não é um conceito potencial ou manifesto (a não ser enquanto possibilidade imediata) em função das ideias de liberdade, mas o Ego é livre ao recebe-las.
Livre de ideias pela simples razão de que a crença está ausente.
Quanto menos se falar de Kia, menos obscura se torna.
Relembramos que a evolução nos ensina, através de punições terríveis, que a concepção é a realidade maior, mas não a libertação maior dessa evolução. Assim teremos:
Virtude: Arte Pura.
Vício: Medo, crença, fé, controlo, ciência, etc.
Auto-Amor (self-love): o estado de espírito ou a condição gerada pela emoção, pelo riso – o que se transforma no princípio que confere ao Ego a apreciação ou associação universal – que nos permite a ideia ou sentido de anexação, anterior à concepção.
Exaustão: aquela sensação de vazio transportada pelo esgotamento do desejo através da dissipação do próprio desejo.
Quando o estado de espírito está em consonância com a natureza, quando a mente se liberta da insatisfação do desejo por cumprir… esse vazio é sensível à sugestão subtil do Sigilo.

do PRAZER, da LIBERDADE E do PODER.

Para além do Ego, haverá algo em que acreditar?
Que desejamos – cada um de nós – além da negação de tudo enquanto realidade?
Ele, o Ego, somos nós…
O Ego, é invisível.
Somos aquilo em que acreditamos…
O processo criativo reduz-se a esta fórmula.

Os nossos actos são o resultado de ideias com vínculos profundos nas nossas crenças e, como elas (crenças) inseparáveis de nós próprios – crenças: obscuras, indirectas e decepcionantes.
A dualidade é o resultado da acção:
Céu – Inferno
Tudo – Nada
O Céu será o espaço de desejo do feminino
O Inferno o espaço do intenso desejo
O Purgatório será, portanto, o espaço da esperança adiada ou da indiferença após um momento de decepção.
Poderemos assim chegar à conclusão de que estes espaços de crença são todos iguais….
O mago que busca o prazer, ao concluir que existem “diversos níveis de desejo”, entregar-se-à à Virtude e ao Vício – torna-se Kiaísta.

Montado no Tubarão do desejo individual, o mago atravessa o oceano da dualidade e mergulha, em seguida, no auto-amor.

Religiões; o mesmo que projecções da nossa incapacidade, suporte (conforto) das nossas fantasias e medos – sublimações da superstição e afirmação de paradoxos (“Deus está no Céu e sempre”, “o Todo-Poderoso é inconcebível” mas emana sua própria concepção ou sua negação, comete o suicídio etc.) com argumentos que frequentemente roçam a imbecilidade. E para obter o prazer máximo a custo mínimo, devemos contar os nossos pecados e eles serão perdoados. A religião provoca, desta forma, a transformação do homem livre numa marioneta condicionada e manipulada ao sabor dos interesses de um poder…
e o terror é o seu governante.
A religiosidade, ou através da religiosidade o homem conquista apenas a sua própria “manjedoura”, por mais imaginária que essa religiosidade possa ser!
A perspectiva não é agradável: O homem terá de reaprender tudo por si próprio.
Terá que nascer – renascer – de si próprio com toda a sensibilidade do seu corpo.

Muitos enaltecem os ideais da Fé.
Acreditam que eles (ou qualquer coisa) são deuses – “transformam-se” assim em tal “coisa”, ainda que as suas atitudes demonstrem o contrário.
Será melhor admitir a própria incapacidade ou insignificância do que carregar sobre as costas, eternamente, ideias cimentadas na fé.
Ideias que não nos levam a lugar nenhum.
O que é superficial “protege”, mas não altera o vital: portanto, rejeitemos tais ideias…

A Fé é a nossa própria negação, a metáfora do idiota – a fé está condenada ao fracasso.

Para que as “cadeias” se tornem mais eficientes, os governos, em geral, forçam as religiões a actuar junto dos seus escravos (catequizando-os) e são, normalmente, bem sucedidos; são poucos os que conseguem escapar às malhas da religiosidade, os méritos dos catequizadores são grandes.
Porém, quando a fé se desvanece, o Eu Superior entra em acção. E os menos tolos lembrar-se-ão de que Deus é uma criação deles próprios, portanto, sujeito às mesmas leis.
É desejável, esta ambição de fé?

Eu, pelo que me diz respeito, não conheci um único ser humano que não fosse Deus.

Outros há que, dotados de grande conhecimento, não sabem exactamente o que é uma “crença”.
Como acreditar naquilo que desafia as leis naturais e as crenças existentes.
Obvio será que não é dizendo: “- eu creio”.
A arte foi há muito esquecida.
Na realidade, estes estão sujeitos à estupefacção, à distracção a partir de seus próprios argumentos infelizes… confusos…
Adoptam seus dogmas, comportamentos que impossibilitam o exprimir do seu verdadeiro potencial – presos a preconceitos de pseudo coerência…
A “luz” de seu conhecimento estagna qualquer possibilidade de realização pessoal.
Quantas vezes os vemos perdidos na racionalidade das suas explicações?
O ser humano não consegue acreditar apenas pela fé ou pelo ter, uma vez que ele só pode entender o conhecimento adquirido a partir de uma nova percepção da realidade. Se somos tudo, para quê a necessidade de imaginar que não o somos?
Sejamos místicos.

Outros acreditam em orações: ainda não compreenderam que pedir é um acto de submissão – o mesmo que ver os seus desejos negados.
Que estas palavras possam vir a ser a base de seu Evangelho pessoal. “Oh, vós que viveis a vida de outras pessoas, ouvi: – a não ser que o desejo seja subconsciente ele não se realiza, pelo menos nesta vida. Dormir pode ser melhor que rezar. A concordância é uma forma de desejo oculto, um meio de “não pedir”; é assim que a fêmea consegue tudo do macho”.
Use a oração como um meio de exaustão, só assim poderá vir a realizar o seu desejo.

Alguns estão empenhados em mostrar as semelhanças entre as diferentes crenças; acabam por cair num equívoco e nunca mais se “levantam”…
acabam por nunca encontrar as semelhanças nem sequer a quinta essência das religiões.

……. decepcionar para governar ………….. para conseguirmos a transcendência, não podemos dar espaço a um deus ou à religião …….

Há os que veneram a Magia Ritual
acreditam atingir grandes êxtases! Os nossos asilos estão cheios deles, bem como os palcos!
Será através do simbolismo que nos transformamos naquilo que é simbolizado?
Se eu me coroar rei, transformar-me-ei num rei?
O mais provável seria transformar-me num objecto de piedade…

Estes Magos, cuja insinceridade é a sua própria segurança, não passam de janotas desempregados de bordeis.
Magia é apenas uma habilidade natural para atrair sem ter que pedir; ritual é aquilo que não foi afectado, e a sua doutrina nega a doutrina daqueles.

Eu conheço-os bem, tal como conheço o seu percurso de “iniciação” – um percurso que apregoa o medo do próprio conhecimento.

Vampiros!…
As vossas práticas provam a vossa própria incapacidade, não sois possuidores de quaisquer conhecimentos, não possuís qualquer prática mágica…

…. A liberdade e energia não são obtidas por meio da servidão nem o verdadeiro poder é obtido por sua desintegração.

Será que a nossa mente já está saturada e dividida, que não somos verdadeiramente capazes nem mágicos?

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Austin Osman Spare nasceu em Inglaterra em 1886 e faleceu em 1956.
Spare foi um dos mais interessantes ocultistas anglo-saxónicos. Pintor e Mago, Spare (filho de um policia londrino) é iniciado ainda muito jovem nos mistérios da bruxaria por uma senhora de apelido Paterson – uma velha bruxa. De 1927 até ao ano de sua morte, Spare viveu como ermita nos suburbios da cidade de Londres. É por muitos comparado a H. P. Lovecraft, outro importante estudioso dos níveis obscuros da mente

ZOS VEL THANATOS

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ZOS VEL THANATOS

 

o sistema de bruxaria de Austin Osman Spare é a Unificação. uma unificação entre Arte e Magia que opera no campo da estética e cujo objectivo é o auto-conhecimento do Génio Criativo. este progresivo auto-conhecimiento solta-se e percorre o caminho da encarnação – do Sonho Primordial – que se relaciona directamente com o Divino Artista.

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o sistema de bruxaria de Austin Osman Spare, denominado, também, de Culto do Zos-Kia está relacionado, fundamentalmente, com o Desejo. todo o Desejo. e no sonho que qualquer pessoa transporta no seu Ser Interior. e tal sonho pode ser materializado ou (segundo o mago): “feito carne como a verdade viva em sua experiência” e mediante um método específico de bruxaria – chamado Ressurgimento Atávico. o ressurgimento de atavismos é processado por métodos onde o cumprimento do desejo não é alheio. tal processo implica o envolvimento da interacção da vontade, o desejo e o “credo” – em liberdade e ao acaso.

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segundo o dicionário um atavismo é:

   1.- um fenómeno de herança descontinua, pela qual um descendente apresenta características de um antepassado que não se revelaram ou não estiveram latentes nas gerações intermédias;

   2.- regresso a um estado mais primitivo;

   3.- tendência a imitar ou a manter formas de vida, costumes, etc., arcaicas.

neste contexto um Atavismo será tudo aquilo que implica conteúdos subconscientes e profundamente enraizados – mas esquecidos – ou, ainda, perdidos nas profundezas da mente – que podem constituir recordações ou memórias ancestrais (tanto relativas a reencarnações passadas como a níveis de consciência pré-humanos). usualmente apresentam-se sob formas semi-bestiais e transportam consigo conteúdos emocionais mui próximos do dito terrível, para a consciência mundana quando confrontados com essa realidade. daqui surgem, naturalmente, as lendas dos espíritos familiares das bruxas e os mitos que se referem a homens que se convertem em animais (licantropia). daí as técnicas ritualistas de identificação – como é o caso do colocar máscaras de animais na maioria dos sistemas chamânicos e mágicos da antiguidade.  exemplo disso, serão os ritos do Antigo Egipto.

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a técnica da obsessão induzida por processos mágicos que Spare usou para materializar o “sonho inerente”, baseava-se na busca e na concentração no desejo. e o desejo era representado por um símbolo, o qual seria (deveria ser) o sentido ou o estar vivo e, por conseguinte, potencialmente criativo através do acto espontâneo da vontade magnetizada.

Spare utilizou três metodos para despertar os extractos de memórias subconscientes: o sistema de sigilos, o alfabeto do desejo e a utilização de símbolos “sensíveis”.

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no sistema de sigilos, Spare condensava o seu Desejo numa frase curta. posteriormente apagava (dessa frase) todas as letras que se repetiam. quando a frase estivesse “minimizada” (quando a frase do desejo estivesse reduzida ou “limpa”) compunha um grifo ou sigilo com a combinação das letras resultantes, depurando o desenho segundo a sua Arte. o símbolo resultante não devia sugerir, de forma alguma, a natureza de seu Desejo.

no Alfabeto do Desejo cada letra representa uma sensação pensante, um conceito estético, um principio sexual localizado nos estratos de memórias ancestrais apropriadas à sua forma e natureza. Spare observou certas correspondências entre os movimentos internos do impulso sexual e as formas externas da sua manifestação em símbolos, sigilos, ou letras simples representadas e carregadas com a sua energia. Spare utilizou também este alfabeto para criar imagens elementares ou “chamar” os “espíritos” de outras esferas.

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os Símbolos Sensíveis podiam ser utilizados para a profecia e adivinhação. introduzindo o sigilo adequado no subconsciente, o mago seria capaz de “pensar por si mesmo”. se o sigilo tivesse uma pregunta que se referisse a algum acontecimento futuro, criava – a partir da sua própria sensibilidade – uma verdadeira imagem criativa imprimindo aí, as partes simbólicas. se estivesse correctamente construído e sem elementos supérfluos, os quais viessem a poder criar ramificações inúteis, provocaria o nascimento da própria verdade ou resposta, uma vez que cada pergunta continha, de alguma forma, a resolução ou a própria resposta.

 

Spare considerava que, para que esta linguajem mágica viesse a ser verdadeiramente eficaz, cada individuo devia desenvolver a sua própria estrutura de alfabeto e que, a partir do subconsciente ou através de sonhos ou, ainda, por meio da escrita automática criasse o seu método – um pouco como os actuais artistas de vanguarda:… em processo e progresso. considerava, também, que os fracassos no que concerne à adivinhação, se devem ao facto de que o operador nem sempre pode conectar ou vincular a mente subconsciente com a mente consciente através do simbolismo tradicional que nos proporciona certos métodos adivinhatórios.

 

para ele, em exclusivo, Spare criou um baralho de cartas chamado ‘Arena de Anon’, que consistia numa sequência de figuras magicas – variações do seu Alfabeto do Desejo. quando os visualizava intensamente, estes podiam excitar o subconsciente e surgia (segundo ele) uma ou várias imagens concordantes com a natureza do sigilo. todavia, para que tal sigilo tivesse êxito era importante esquecer deliberadamente o objecto de desejo, uma vez que não sendo assim a consciência desvirtuaria todo o processo. e isso, impedia a sua livre materialização e – logicamente – expressão. para ele havia que vazar a mente de tudo, excepto do sigilo. e este, elaborado de tal forma que nos conduz directamente à Mistica de Zos e do Kia.

 

no Livro do Prazer, Spare define Zos como sendo o corpo do ser humano (na sua totalidade). ou seja, tudo aquilo que encarna e se manifesta – o ego cognitivo e perceptivo, “O Corpo considerado como unidade”. daí o simbolizar graficamente como uma mão.

 

o símbolo complementar é Kia o “Eu” atmosférico, “a absoluta liberdade que ao ser livre é suficientemente poderosa para ser encarada como realidade”. é a Fonte única de toda e qualquer manifestação e a Verdade única por detrás de todas as ilusões, é a Energia Primária, o Vazio. o Kia é representado simbolicamente como um Olho.

 

a ‘manipulação’ da Mão e do Olho, símbolos do intercâmbio – Falo e Vagina, provocam a “consciência do tacto” e do “êxtase na visão”, o Zos e o Kia são – portanto – instrumentos da sensibilidade. são uma visão que exprime o fundamento da Nova Sexualidade que Spare desenvolve com o objectivo de formar uma arte mágica, a arte da sensação visualizada. a que proporciona “chegar à unidade – cada um com todas as sensações”. ou seja: cada um capaz de transcender as polaridades duais da existência através da aniquilação da identidade separada por mecanismos que nos levam à Postura da Morte (Thanatos).

 

a Mão simboliza a Vontade Creativa e o Olho Desejo/Imaginação. e, no ponto médio de contacto entre esta corrente activa de vontade e a corrente passiva, a da Imaginação, nasce o conceito de Nova Sexualidade.

 

a Nova Sexualidade, no sentido que Spare concebeu, não é a sexualidade das dualidades positivas. será antes, o Grande Vazio, o vazio do Negativo – o Olho de Potencial Infinito. a Nova Sexualidade é, simplesmente, a manifestação da Não-manifestação, o nem-uma-coisa-nem-outra ou  “a entrada no vazio entre dois pontos”.

 

o mecanismo da Nova Sexualidade baseia-se na tese da dinâmica da Postura da Morte, uma fórmula desenvolvida com o propósito de materializar todo o potencial negativo em termos de um poder positivo. no antigo Egipto a múmia foi a imagem dessa fórmula e a simulação por parte do Adepto do estado – morte – nos inúmeros ritos tradicionais incluem um total “silêncio de movimento” – uma pausa nas funções psicossomáticas. Desejo, Vontade Energétizada e Obsessão, são chaves da manifestação sem limites – de qualquer forma e de qualquer poder que esteja latente no Vazio. a sua fórmula é pois – a Postura da Morte.

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a Mulher Universal o Todo Prevalecente a que Spare frequentemente alude, é simbólico neste conceito – o da Nova Sexualidade e o qual transcende a própria dualidade. ela é o símbolo da polaridade perfeita que se resolve no interior do Nada. é o Desejo Potencial e Primordial. um desejo sempre disposto a irromper espontaneamente de forma a converter-se no “nosso último credo ou crença”. é o único factor constante da nossa mutabilidade, é a Mulher Primitiva a que simboliza o Desejo de união com o Todo (desde o nosso ego consciente até à totalidade – ou, se o entendermos, desde o Zos até ao Kia).  ao ampliar o sentido de querer abarcar o Todo, podemos perceber o sentido do Eu  em si mesmo. entender-se e, finalmente, Ser. ser (Kia). pode, ainda, estar representada em formas como a da Deusa, da Bruxa, da Mulher Primitiva ou em conceitos abstractos como o sexo, o desejo ou qualquer emoção inconcebível. todas estas representações são, sem dúvida, o que Spare denomina “credo ou crença livre” – e estas ferramentas são úteis temporalmente para o Kiasta. porém devemos advertir que o familiar produz fadiga e esta leva-nos à indiferença e à esterilidade. assim sendo, em última instância, há que evitar que estes “credos ou crenças” se quedem enquistados por formas particulares e cheguem a ser familiares, já que a familiaridade conduz à desvitalização, à preguiça e a atitudes convencionais (entenda-se não criativas).

Spare concentrou o tema de sua doutrina no Credo da Afirmação de Zos vel Thanatos.

“Creio no corpo agora e siempre… porque sou a Luz, a Verdade, a Lei, o Caminho e nada encontrará nada salvo através do seu corpo. Não os ensinei o caminho ecléctico entre os êxtases; aquele modo precário e funâmbulo…? Todavia não o conseguiste, por cansados e temerosos. Despertai! Não vos deixeis hipnotizar pela triste realidade em que acreditais e enganais. Uma vez  que a Grande Maré a da mudança chegou. A grande Campainha soou. Deixai que outros esperem a imolação involuntária, a forçada redenção tão certa para muitos apóstatas da Vida. Neste dia, vos peço que procureis na vossa memória, porque grandes unidades se aproximam. O Incentivador de todas as memórias és tu. A tua Alma. A Vida é, tão só, desejo. A Morte reformulação… Eu sou a ressurreição… Eu, que transcendo êxtase por êxtase, meditando na Necessidade de Não Ser no Auto-Amor…” 

             o Credo altamente técnico de Zos-Kia resume-se a poucas sentenças:

nosso Livro Sagrado, o Livro do Prazer. nosso Caminho, o Caminho ecléctico entre êxtases;  aquele caminho precário e funâmbulo. nossa Deidade, a Mulher Todo-Prevalecente. (“e eu me extraviei com ela, no percurso directo”). nosso Credo, o Corpo Vivo. (Zos): (“digo-vos de novo: este é o vosso momento de realidade o corpo vivo”). nosso Sacramento, os Sagrados Conceitos Intermédios. nossa Palavra, não importa – não necessita ser. nossa Eterna Estância, o místico estado de nem um nem outro. o “Eu” Atmosférico. (Kia).

 

a nossa Lei, Violar todas las Leis.

 

(tradução livre a partir da versão francesa por: manuel de almeida e sousa)

Dos SIGILOS em progresso

Austin Osman Spare, artista plástico britânico (1886-1956), foi, segundo ele mesmo, iniciado por uma velha feiticeira, tendo ficado para a história da magia como motor daquilo a que se convencionou chamar “Magia do Kaos”. Era um homem de acção, simultaneamente artista e mago. Sendo talvez o primeiro da nossa era a lançar-se no processo mágico experimental a que alguns designam por “Técnicas de Magia Gráfica”, cria os primeiros Sigilos – os seus desenhos e pinturas são reflexo disso -, conseguindo, segundo os seus contemporâneos e seguidores, óptimos resultados.
A sua obra plástica é vasta, mas os seus estudos mágicos encontram-se pouco divulgados entre nós. De realçar, do seu conjunto, O Livro do Prazer, as suas notas sobre a “Escrita Automática”, que os dadaístas e surrealistas aprofundaram, e o testemunho, passado por terceiros, sobre o Alfabeto do Desejo. Todas as suas obras ou anotações mágicas estão impregnadas de símbolos mágicos e de uma ideia base:Qualquer um pode criar os seus próprios símbolos e talismãs mágicos. Um pouco como – voltando aos surrealistas – “a poesia feita por todos”… E a magia, analisada por esta perspectiva, é, obviamente a da poética.
Podemos afirmar que a arte de Spare reflecte desejo, o seu desejo. E esse desejo, pouco transparente ao olhar menos atento, é já um signo mágico – um “Sigilo”.
Em cada um dos trabalhos que realizou – desenhos ou pinturas –  os “Sigilos” estão presentes. Estudá-los (o que não constitui uma tarefa fácil) é estudar as suas técnicas de “conquista” dos objectivos que visava enquanto mago.
Spare tornou-se membro da “Golden Dawn”, tal como Aleister Crowley com o qual privou e do qual divergiu posteriormente. O artista-mago ultrapassou os conceitos mais ortodoxos de ocultismo, centrando-se em todos os aspectos do que se convencionou chamar “criação”, mas também em actos de “destruição”, provocação e diversão mágica/poética. Pondo em jogo elementos como a magia, a ciência e a arte, consta, porém nunca haver caído na armadilha de levar as suas experiências demasiado a sério.

Falar de Sigilos é também falar do artista e mago Austin Osman Spare. Daí esta  pequena introdução sobre essa figura ímpar que marcou o século XX numa área mais do que controversa.

CONSTRUÇÃO DE SIGILOS

A construção de um Sigilo passa, antes do mais, por um processo mágico. É uma “técnica mágica”… O Sigilo é um símbolo, um signo que reflecte um desejo de quem o estrutura. Mas será também um possível talismã. E, igualmente, um segredo expresso pelo seu “construtor”, consciente do objectivo que possui. Para isso o  “construtor” deverá, antes de mais, escrever o seu desejo de forma clara. Em seguida, construir a imagem gráfica desse objectivo. O percurso posterior implica dar poder ao símbolo e esquecer tudo o que foi feito.
Complicado?… Passemos ao percurso:

1.    Ao expressar o seu objectivo por escrito, o “construtor” deverá ser claro. Desejos simples, frases simples e objectivas. Ex: Vou ganhar a lotaria esta semana. Considerando-a como base do Sigilo, passará ao ponto seguinte;
2.    A frase, objectiva, clara e simples, reflecte um desejo: ganhar a lotaria. Uma postura afirmativa: Vou. Um momento: Esta semana. Cortará agora as letras que se repetem. Após o corte, verificará que restam as letras v, u, g, h, l, i, m. Se preferir trabalhar com maiúsculas, teremos: V U G H L I M;
3.    Com estas letras – V U G H L I M – fará um desenho gráfico, como o exemplo dado na figura que se segue, e uma “sentença” (palavra(s) mágica(s)), a qual poderá vir a ser alvo de um acto vocálico emitido pelo aparelho fonador do “construtor”. Ex.: VUG  LHIM. Temos, portanto, um sigilo construído (figura 1), e duas palavras mágicas que poderemos vocalizar repetidamente até que percam todo o significado que lhes imprimimos inicialmente.

figura 1

Da sobreposição das letras resultou uma imagem gráfica. Essa imagem será um dos possíveis exemplos dum sigilo que exprime o nosso desejo e que terá, agora, de ser “carregado”.

1.    “Carregar” um sigilo é dar-lhe vida, vida mágica – poder.

E como dar poder ao símbolo?
Enviando a imagem para o inconsciente…
Há processos vários para atingir um estado mais receptivo ao acto. Os alquimistas defendiam o contacto amoroso isolado – ou seja, consigo próprios. Por esse processo entravam em estados simpáticos com o seu inconsciente.
Certos  rituais que envolvem a dança e o ritmo podem provocar estados similares, criar momentos mágicos relevantes. O importante, de facto, é criar um momento nosso. Porque somos nós, segundo Spare, a fonte de toda magia. Desta forma, criamos uma barreira contra quaisquer intromissões e mais facilmente acreditaremos no acto em que estamos envolvidos. Não tendo de acreditar cegamente no Sigilo, jamais, porém, se poderá pôr em causa o seu poder.
Em síntese: há que produzir a mudança. Porque a mudança é, com efeito, a essência da Magia. Quando atingido o estado de êxtase, pelo processo escolhido, deveremos, assim, olhar fixamente para o desenho e imaginá-lo dinâmico e poderoso – brilhante.
É durante o êxtase que há que esquecer o significado da imagem. Esta é a fase que levanta mais dificuldades, mas teremos que, a partir dessa altura, vê-lo como um símbolo de poder. Só isso.
Uma nota mais: esqueçamos o acto. Não interferiramos. Preocupemo-nos apenas em “cumprir” as etapas estabelecidas de forma criativa, logo livre. Depois do êxtase e de um olhar fixo no Sigilo, sentiremos o tal poder. Passemos então toda esta energia para o símbolo.

UMA EXPERIÊNCIA EM PROCESSO E PROGRESSO

Da reflexão sobre processos de “encantamento” e de actos de criação, executados por operadores estéticos contemporâneos, concluímos que o acto “mágico” e o processo  de criação artística estão muitas vezes em jogo, que jogam entre si. O rito está presente e a cumplicidade existe. Melhor: cada uma delas explica a outra e as duas são já, em si, uma unidade visível….
Enquanto “actuante” no acto pictórico ou performativo, o artista é, desde logo, um mago. Um “sacerdote” que preside ao acto. O balbuciar palavras ou o gritá-las no percurso da acção fazem parte da pesquisa de um acto de consciência respiratório e do aparelho fonador. Busca do tal êxtase. O performer, no rito, é um mago que terá de manipular o todo para cativar os seus “fiéis” e, enquanto mago, terá de saber libertar-se das máscaras que o cobrem – voltar-se para os “deuses”.
O “actuante”, nestas acções, desenvolve uma “sigilação” no e do espaço. Desenha Sigilos em processo e, em progresso. Desenvolve, por vezes de forma inconsciente, técnicas de magia onde os vários Sigilos dispersos no acto são usados para representar a sequência da acção ou as mais complexas imagens que espelham a sua intenção.
Segundo historiadores e antropólogos os homens das cavernas desenhavam, já, símbolos geométricos ou até mais complexos, onde exprimiam os seus desejos. Por exemplo, uma boa caçada. As imagens, neste caso, são já um alfabeto de desejo, são ou serão os Sigilos dos nossos ancestrais. Também Spare ele se preocupou em criar o seu alfabeto próprio – o “Alfabeto do Desejo”. E, com esses símbolos por si criados, desenvolveu a sua técnica mágica.
Para mim, a acção “performântica” é regida por movimentos secretos e processos invisíveis, compostos pela precariedade do instante e imbuídos de certo automatismo que não resvala, no entanto, para lá da razão. O seu aspecto mágico tem em conta que o movimento do corpo é poderoso e suficiente para evocar algo que está para além dos níveis do consciente. Os sentidos são, também eles, evocados com propósitos que os transcendem. É, portanto, um trabalho em processo que rompe, na necessidade de diálogo entre linguagens estéticas – um novo território, o território do nada.
E é o nada, o vazio, que nos interessa pelo seu poder. Pela capacidade que tem de transmitir o desejo “sigilado” no acto – na acção.

Este trabalho com signos e símbolos mágicos em progresso, leva-nos a campos de acção vários. À consulta de outras experiências e ao desenvolvimento de acções estéticas ou mágicas. Muitos são os projectos ou acções no campo estético onde o lado mágico está presente. Para não ir além do nosso Portugal, limitar-nos-emos a referir nomes como os de António Maria Lisboa, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Ernesto de Sousa bem como tantos outros, ainda vivos ou já desaparecidos.
O fenómeno recente “web” está repleto de informação nestas áreas. Umas mais, outras menos credíveis. A especulação neste campo é vasta, muitos são os “curiosos” que se aventuram ou dizem que se aventuram nestes campos. Nos finais do século XX assistimos ao aparecimento de seitas ditas satânicas que, também elas, se envolvem em experiências na área do “kaos” e exploram os potenciais dos Sigilos. Na minha óptica, o satanismo é, porém, um absurdo. E porquê? Pela simples razão de que Satã não passa de um mito ligado ao cristianismo. E, se o objectivo é pôr em causa a figura de um deus (no caso, o dos cristãos), cultivar o seu oposto será afirmar a existência desse mesmo deus.

Da experiência satânica…
Li, numa das muitas digressões que faço “net” fora, um texto curioso sobre sigilos inscritos sobre um pentagrama. Um pentagrama invertido, como é apanágio dos grupos ditos de Satã. O pentagrama é já um signo bem marcado pelas religiões primitivas – não o inverterei; estrela de cinco pontas, tem um significado muito especial: representa a figura humana de pernas e braços abertos. A ponta superior da estrela é a cabeça; os ângulos laterais, os braços; os ângulos inferiores as pernas. o pentagrama tem uma segunda leitura:  o ângulo de topo é também a representação do espiritual, o ângulo superior esquerdo representa o elemento ar, o superior direito é o elemento água e os ângulos inferiores representam a terra (esquerda) e o fogo (direita). Tendo em conta a estrela de cinco pontas – o pentagrama – e tendo em conta as sugestões da tal experiência do grupo “satânico”, desenvolvamos uma acção que abarque esses valores e significados. Em paralelo, desenvolvamos o mesmo acto com uma estrela de sete pontas, a que representa a sequência dos sete dias da semana.

Comecemos pela acção que envolve o pentagrama.
Proposta: uma acção estruturada a partir de cinco Sigilos construídos pela forma indicada na primeira parte deste documento. Porém, os valores em jogo, as frases significantes, obedecem à simbologia da estrela.
Assim, o ângulo superior – a cabeça/espírito – representa o “actuante”, o seu desejo ou vontade, o “eu quero – eu desejo”. Seguem-se os dois ângulos correspondentes aos braços e mãos: as mãos, que tentam apoderar-se do objecto desejado. A esquerda, que envolve o que é relevante que seja realizado – que paira no ar e que desejamos alcançar; a direita, o progresso (o navegar nas águas do desejo) – o “como”. No que respeita aos pés da estrela, existe uma ligação privilegiada com os elementos terra e fogo, os seus tempos e ritmos. Serão dois Sigilos que completam o desejo em jogo de forma afirmativa – o “aqui” e o “agora” – o local e o calor que provoca o desejo.
Em seguida, os cinco Sigilos deverão ser colocados nas posições correspondentes  e  carregados pelo processo mágico escolhido pelo “construtor” do símbolo.

A construção do “Sigilo final” representado na figura obedeceu às seguintes passagens:
1.    para cada ângulo do pentagrama – colocação do Sigilo e das palavras resultantes, um em cada ângulo da imagem de suporte;
2.      dada a inexistência de um alfabeto recreado pelo “actuante”, utilização de um alfabeto esotérico instalado no computador (no caso concreto da imagem, do alfabeto enochiano) para inscrever as palavras resultantes;
1.    arranjo gráfico elaborado sobre um fundo negro, sublinhado a vermelho somente por questões estéticas (recorreu-se a programas gráficos instalados no computador por razões práticas, a acção poderia ter sido elaborada em suporte de papel);
2.    activação – “carregamento” – dos sigilos, conseguida através de um ritual com base na acção corporal ao ritmo de sonoridades que envolveram marcação de tambores.

Da acção com a estrela de 7 pontas…
“Triângulo de 7 pontas” disse-o António Maria Lisboa
Esta estrela possui a seguinte particularidade interessante:

Cada ponta representa um planeta, e uma estrela abre o circuito precisamente na “cabeça” ou ponta superior. É, portanto, de um circuito ou percurso que se trata. Esse percurso tem início no topo, isto é, no Sol, no primeiro dia. Estamos perante o Dia do Sol. Se seguirmos as linhas da estrela como se a desenhássemos sem levantar o lápis do papel chegaríamos à ponta correspondente ao Dia da Lua. Continuando a seguir o percurso (linhas da estrela) passaríamos, sucessivamente, ao Dia de Marte, Dia de Mercúrio, Dia de Júpiter, Dia de Vénus e dia de Saturno… E, se não nos detivermos, novamente ao Dia do Sol. Iniciaremos a viagem por uma outra semana, prosseguiremos no tempo.
Esta é, pois, a Estrela do Tempo. A estrela que marca o ritmo a que estamos sujeitos.


A criação de Sigilos (sete), um para cada dia – um em cada dia, irá “mover” a acção mágica e o desejo expresso, iniciará o seu percurso na “Roda do Tempo”.